Esqueça o peixinho dourado. Conheça a nova anatomia da atenção e as melhores formas de capturá-la
Você não está distraído; apenas presta atenção em muito mais coisas que seu bisavô. E mais: Michel Alcoforado explica como estabelecer conexões genuínas neste mundo de excessos e fragmentado
Olá, humanos! Passei a última semana toda meio mal, gripada, tonta, mas na quinta o incômodo deu um tempo pra eu poder saborear devidamente uma live do Michel Alcoforado sobre a crise de atenção. O assunto não é novo, eu mesma já falei algumas vezes sobre ele aqui - inspirada pelo livro “Foco Roubado”, do Johann Hari. Mas o Michel, a quem eu conheço e admiro desde antes da pandemia, conectou o fenômeno com Comunicação, Marketing e Publicidade de uma forma muito interessante e, pelo menos pra mim, inédita. Antes de mergulhar no storytelling, conhecimento e humor do antropólogo, vamos ao podcast da edição anterior, para os que não tiveram tempo de ler.
Semana passada by NotebookLM:
“Ferramentas de AI? Sim! Promessas malucas e ansiedade? Não, obrigada.”
Foi Herbert Simon, um economista alemão com cidadania americana, quem criou o termo “economia da atenção", ainda na década de 70. Simon percebeu que, quanto mais informação, menos atenção dedicada a cada pedaço dela. Ao estabelecer que a atenção humana havia se tornado um bem escasso, entendeu que ela virara uma mercadoria e, portanto, uma moeda de troca a ser negociada segundo a lógica capitalista.
O que hoje parece meio óbvio rendeu ao pesquisador diversos prêmios, inclusive o Nobel de Economia.
O fenômeno obviamente escalou e, como acontece com tudo que ganha relevância atualmente, foi resumido numa boa variação de memes estrelados por peixinhos dourados depois que uma pesquisa da Microsoft supostamente determinou que nossa capacidade de atenção é ainda menor do que a deles.
A continuação da história a gente conhece: insatisfação e julgamento em relação a nossa habilidade de focar, de aprender, de guardar. E dá-lhe meditação, exercícios cognitivos, best-sellers de autoajuda sobre o tema e, claro, muito diagnóstico e medicação.
Embora nada disso seja, em si, um problema, o ponto do Michel é que precisamos parar de achar que a desatenção é uma falha individual - o que hoje chamamos de crise de atenção é, como ele gosta de dizer, “culpa da cultura", da forma que a vida moderna se organizou. A partir dessa redenção, o antropólogo se permite falar não na falta de atenção, mas numa nova forma de experimentá-la. E é aqui que as coisas se conectam lindamente com o que nós, comunicadores, marketeiros e publicitários, fazemos.
“Na sociedade moderna, o valor está diretamente associado à capacidade de capturar a atenção do outro", diz ele. “Então, o capitalismo que exige sua atenção é o mesmo que te faz sentir desatento. Quanto mais ele avança, mais multiplica produtos, serviços e conteúdos que competem pelo seu foco."
Em um cenário onde um único serviço de streaming tem mais de 100 milhões de músicas - e adiciona 60 mil novas faixas todo santo dia - Michel garante que o problema não está em mim nem em você. Está num mundo que cobra atenção nos mesmos moldes que a exercitada por seu bisavô, quando a quantidade de informações e estímulos era infinitamente menor.
“Você não está desatento. Apenas presta atenção em muito mais coisas que seus antepassados.”
Não sei exatamente porque, mas lembrei de “O tempo não para", do Cazuza: “Eu vejo o futuro repetir o passado/ Eu vejo um museu de grandes novidades/ O tempo não para/ Não para, não para".
Voltando então um pouco nesse tempo, Michel explica que o modelo de atenção ao qual nos referimos atualmente data do século XIX, uma época que pediu disciplina. Das crianças sujeitas à palmatória aos trabalhadores dispostos nas linhas de fábrica da revolução industrial, “o corpo desejado era o corpo controlado". Vem daí uma idéia que nos confunde até hoje: a crença de que disciplinar o olhar era disciplinar a atenção.
Da mesma forma que a foto acima, essa noção envelheceu e já não atende a realidade atual:
“É preciso aceitar que, em 2025, atenção não tem nada a ver com visão, biologicamente falando. Você pode estar olhando para o celular e, ao mesmo tempo, ouvindo a pessoa amada. Pode estar aproveitando o show do Gil e também filmando seus trechos favoritos", garante Michel. “O fato de a pessoa estar olhando para muita coisa não significa que esteja distraída. Ela apenas está vivendo um jeito de estar atento do século XX.”
A chamada ecologia da atenção evoluiu para envolver muito mais que o controle de um órgão - hoje diz respeito à nossa subjetividade. Está relacionada com a predisposição dos indivíduos de se conectarem genuinamente com algo ou alguém, mesmo que não estejam olhando para esse “destinatário” ou estejam até mesmo de olhos fechados.
A partir dessa constatação, é possível estabelecer três tipos de atenção distintas, que tentam cobrir a forma como vivemos e nos relacionamos com o mundo atualmente.
ATENÇÃO HIPERFOCADA
É a mais parecida com a atenção do século XIX e hoje está presente na minha relação comigo mesma. É a atenção do maratonista, do fiel na missa. Segundo Michel, o território não é interessante para marcas, que, quanto insistem, acabam sendo vistas como interrupção indesejada.
“Ninguém mais fica sentado na hora do intervalo do Jornal Nacional esperando o filme que você fez para ganhar Cannes", provoca ele.
ATENÇÃO FLEXÍVEL
Atenção do nosso tempo, em que o consumidor vem e vai: assiste série com o celular na mão, faz as tarefas domésticas ouvindo podcast e tira o celular do bolso para registrar momentos do show. Este consumidor está submetido à lógica do contexto e marcas que conseguirem identificá-lo encontrarão boas oportunidades de comunicação e conexão genuína.
“O Uber inventou um contexto, que é aquele momento em que estamos voltando pra casa no final do dia. Aí vai lá o iFood e se vale dessa oportunidade, comunicando a vantagem de chegar junto com o jantar.”
ATENÇÃO FRACIONADA
É onde o bicho está pegando. Estado em que passamos boa parte do dia, em busca de uma rota de fuga do mundo que insiste em cobrar performance. Há espaço para conteúdo de marcas, desde que elas acionem os gatilhos corretos. O desafio é encontrá-los em um cenário que as pessoas trocam 27 vezes de aplicativo por dia e 70% dizem mexer no celular durante as refeições.
Merecer atenção e construir conexões verdadeiras dependem de uma palavrinha que, de tão abusada, acabou meio esvaziada; mas é recuperada aqui de forma fresca e aprofundada. A chave é estabelecer relevância. Segundo Michel, ser relevante em 2025 não tem nada a ver com ser a favorita e, sim, em estar vivo na cultura. O tempo da atenção contínua, aquela do século XIX, acabou e, com ele, a ilusão de centralidade.
“Esteja presente como quem pertence, não como quem interrompe. Marcas relevantes são percebidas como parte do contexto cultural, não como ruído publicitário.”
Ok, lindo, mas how?
Seja para grandes marcas, seja para nosso perfil pessoal no Instagram, o caminho exige três passos: identificação, reverberação e repertório.
Identificação significa investir na familiaridade. Permite que eu me antecipe ao outro e diga algo que ele gostaria de dizer. É o que faz com que as pessoas liguem em “Vale Tudo” sem som à espera de Odete Roitman, só pra ver Deborah Bloch falar algo que eles gostariam de ter dito. Isso é capturar a atenção em um espaço fragmentado.
“Precisamos ir menos ao SxSW e mais a Caruaru. Para estabelecer familiaridade com o Brasil e se antecipar aos brasileiros, é preciso conhecer o país e seus moradores."
Reverberação é responsividade, é estar presente nas conversas. Não adianta estabelecer familiaridade se não há troca.
“Então, social medias, atenção: a métrica do nosso tempo é o engajamento. Alcance é a métrica do olho, já foi.”
Repertório diz respeito à construção de memória. “Encucar algo sobre você na cabeça do outro” é fundamental para capturar atenção em um mundo fragmentado.
“A memória simbólica não nasce de um grande gesto isolado, mas da repetição qualificada de interações coerentes. É resultado da exposição distribuída e significativa, com variações contextuais e coesão narrativa", teoriza Michel. “É o laranja do Itaú, o roxo do Nubank, o cara que aparecia nas propagandas de Bombril.”
Eu nunca disse que seria fácil, certo? E tem mais um pouquinho. Embora a jornada nem sempre seja linear, o objetivo deve ser entregar os três pilares simultaneamente.
Reverberação e repertório sem identificação fazem uma marca distante. Identificação e repertório sem reverberação resultam em uma marca puramente funcional, de uso pontual e fácil esquecimento. Identificação e reverberação sem repertório até entregam viralização, mas não constróem relacionamento.
Ou seja, temos muito trabalho pela frente - ainda bem. Só é preciso ficar atento porque muito trabalho não significa necessariamente uma avalanche de conteúdo e, sim, a aplicação de sensibilidade, criatividade e recursos técnicos na produção de histórias encantadoras e memoráveis.
Como disse Melissa Jackson Parsey, SVP Brand, Design & Consulting da R/GA, no recente Web Summit Rio, a tecnologia que viabiliza a produção barata de grande volume de conteúdo vai também ajudar os consumidores a filtrarem tudo que não é relevante para eles.
Dois livros que ajudam a nos entender melhor
Eu não sou de fazer recomendação de livro por aqui, mas dessa vez ficou meio impossível. Publicado em 2023, “Foco roubado: Os ladrões de atenção da vida moderna” ainda vale a leitura. Johann Hari - que muitos talvez conheçam por um TED super famoso sobre adição - parte de uma história pessoal para investigar a chamada crise de atenção. A obra combina extensa pesquisa com uma linguagem fácil. Na linha do que falamos acima, ele afirma que a dificuldade de foco não é uma falha pessoal e sim resultado de forças externas que vão do modelo de negócio das bigtechs ao aumento da poluição. Hari discute os impactos do fenômeno para a sociedade e relata experiências bem sucedidas em proteger e recuperar nossa atenção.
Finalizando, eu não podia deixar de citar “De tédio, ninguém morre; pistas para entender os nossos tempos", do Michel - que, dizem as boas línguas, já está se preparando para lançar seu próximo título. O livro traz um compilado dos textos escritos para o UOL TAB entre 2018 e 2023. Talvez porque eu consuma muito o conteúdo dele, alguns capítulos passaram sem deixar grande impacto. Mas tem outros que são interessantíssimos, iluminam fenômenos modernos e permitem que a gente reflita sobre eles a partir de novos ângulos e de forma mais profunda. São conteúdos como "‘Nós contra eles’ e o 'tempo da política'", e "Sofrência, modo de usar".
Pessoal, por hoje é só. Não esqueçam de divulgar a No-Loop para pessoas que vocês acham que podem gostar. Bj!